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Devaneios de Peter LaRubia
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Contos
10 Reais & 01 Maço de Cigarro$
Na segunda vez que encontrei Toni Brandão, ele tinha uma arma apontada para minha cara. Todas as lendas clichês sobre o escritor ermitão que expulsava fãs e jornalistas na base do chumbo se concretizavam bem na minha frente. Mas eu não era jornalista. Muito menos fã. E Toni certamente não se lembrava do nosso primeiro encontro. Embora eu fosse a razão de sua existência, ele não tomava consciência da minha, incapaz de se dar conta da simbiose parasitária que fazia de nós dois, um só. Eu, a alma; ele, o corpo. Eu, o fantasma; ele, a casca. Eu, aquele que anima; ele, aquele que é visto. Em sua ignorância, não percebia que me matando podia acabar com a própria vida.
Sobre Cinema…
Atlanta é genial. Fora da curva. Disso eu já sabia. Mas daí chego no primeiro episódio da quarta temporada. Paper Boi recebe a notícia de que o rapper Blueblood morreu. Nostálgico, começa a ouvir o último CD do cara. E olha só, o restaurante que ele cita na letra tá bem ali na esquina. Vai até lá, pede a mesma refeição q o cara come na música. Dentro da embalagem vem um endereço. Paper boi vai até o endereço. Descobre então que existe uma série de mensagens e coordenadas nas letras do disco do rapper falecido.
Essas coordenadas acabam levando Paper Boi ao local do velório de Blueblood. Lá só está a esposa. E ela comenta que apenas 5 pessoas chegaram até ali nos 30 dias que dura o velório. Paper Boi fica indignado. Apenas cinco pessoas ouviram as letras com atenção suficiente para entender as entrelinhas das canções. A viúva completa: é uma vida inteira de energia direcionada a criar uma obra.
Paper Boi vai até o caixão. O caixão está vazio.
True Detective – Night Country mergulha nas profundezas sombrias da psique humana, onde a linha entre o bem e o mal se dissolve em um emaranhado de segredos e pecados. Com uma trama intricada e personagens complexos, a série mantém os espectadores à beira de seus assentos, envolvidos em um jogo de gato e rato entre detetives e criminosos.
A atmosfera sombria e melancólica é habilmente construída, imergindo o público em um mundo onde a corrupção e a decadência permeiam cada esquina. As performances dos protagonistas são impressionantes, especialmente na maneira como retratam o peso emocional de suas próprias jornadas pessoais.
No entanto, é na resolução do mistério que True Detective – Night Country realmente brilha. O final é uma obra-prima de tensão e revelações, amarrando os fios soltos da narrativa de forma magistral. Cada peça do quebra-cabeça se encaixa perfeitamente, proporcionando um encerramento satisfatório e ao mesmo tempo deixando espaço para reflexão.
Que final! Surpreendeu, resolveu o mistério de forma satisfatória, necessária e arrebatadora; deixou em aberto o que devia deixar e ainda amarrou o tema central. Um belíssimo clímax. Catártico.
Full Circle, dirigida pelo renomado cineasta Steven Soderbergh, é uma jornada intensa e emocionante pelo labirinto da mente humana. Ambientada em um cenário de investigação criminal, a série mergulha fundo nas complexidades dos relacionamentos interpessoais, enquanto desvenda segredos obscuros e revelações surpreendentes.
A narrativa é habilmente construída, com reviravoltas bem executadas que mantêm o público constantemente intrigado e investido na história. As performances do elenco são excepcionais, destacando-se pela profundidade e autenticidade que trazem aos seus personagens.
O estilo visual distintivo de Soderbergh complementa perfeitamente o tom sombrio e tenso da série, criando uma atmosfera envolvente que prende a atenção do espectador do início ao fim.
No entanto, é a maneira como Full Circle mergulha nas nuances da psique humana e explora temas como redenção, culpa e perdão que eleva a série a um patamar superior. O desfecho é poderoso e satisfatório, amarrando os fios soltos da trama de forma magistral.
Junto com “Por trás da névoa”, é fácil considerá-la a melhor minissérie de Drama/Investigação do ano e dificilmente será barrada por outra.
Capítulo 1 - 10 Reais & 01 Maço de Cigarro$
Na segunda vez que encontrei Toni Brandão, ele tinha uma arma apontada para minha cara. Todas as lendas clichês sobre o escritor ermitão que expulsava fãs e jornalistas na base do chumbo se concretizavam bem na minha frente. Mas eu não era jornalista. Muito menos fã. E Toni certamente não se lembrava do nosso primeiro encontro. Embora eu fosse a razão de sua existência, ele não tomava consciência da minha, incapaz de se dar conta da simbiose parasitária que fazia de nós dois, um só. Eu, a alma; ele, o corpo. Eu, o fantasma; ele, a casca. Eu, aquele que anima; ele, aquele que é visto. Em sua ignorância, não percebia que me matando podia acabar com a própria vida.
Quase dava para sentir o cheiro metálico do cano de aço perto do meu nariz e essa imagem de total submissão de certa forma resumia a minha vida. Eu, que vim até aqui em busca de algum tipo mal-ajambrado e patético de vingança, agora lutava para não sentir a urina escorrer pela calça jeans. Por um instante, me perdi tentando catar os cacos de memória para encontrar o motivo exato de ter invadido a casa de Antoni:
A) Abraçá-lo com força, deixando seu cardigã azul safira empapado de lágrimas e catarro enquanto confessava minha inveja? B) Roubar até o último centavo da dinheirama que ele certamente escondia em casa? C) Esmagar aquela cabeça privilegiada de onde escorrem tantas histórias usando uma de suas máquinas de escrever da coleção de peças retrô? Ou D) Todas as opções acima?
Eu sabia que era a letra B, mas a D me seduzia.
Sim, o latrocínio do misterioso best-seller certamente me inundaria com uma iluminada paz de espírito. Simbolizaria uma coroação e uma virada de página, abriria novo horizonte, uma estrada fresca de tijolos dourados sobre a qual eu poderia trilhar sem olhar para trás. Mas é um instante que se evapora quando sinto o cano frio do revólver contra a testa e Toni dá ordens para eu me sentar numa cadeira ao lado da escrivaninha.
Uma mexedela bruta no mouse e a tela de seu computador se acendeu. Apontou a arma para o lado oposto da sala dando ordem para que eu virasse o rosto e disse que eu poderia ir embora ileso, seria como se nunca tivéssemos nos encontrado, bastava responder umas perguntas. Eu quase soltei uma risada, quase. Toni era gago. Repeti dentro de mim: Toni é gago. Como tinha esquecido? Mas minha risada se dissolveu no suco gástrico que meu estômago jorrava toda vez que via a arma balançando na mão de Antoni. Ele tremia, percebi. E não gaguejava pouco, as penúltimas sílabas se arrastavam por instantes que pareciam não querer acabar. Digitou a senha de acesso, suponho, e abriu um programa que eu não conseguia ver. Perguntou meu nome e idade. Respondi, soando como personagem de um romance barato destilando diálogos expositivos. Depois perguntou se eu era homem ou mulher. Não ousei soltar piadas. Homem. Estamos em qual planeta do sistema solar? Não consegui deixar de franzir a testa, porém respondi sem questionar. Planeta Terra. Toda vez que eu respondia, ele marcava opções com o mouse na janela do programa e depois digitava minha resposta. Qual o seu maior sonho? Tentei perguntar o que era tudo aquilo, mas ele se limitou a apontar o revólver direto para meu olho esquerdo enquanto esperava a resposta. O maior sonho da minha vida toda? É. Ficar rico vendendo meus livros, foi a primeira coisa a atravessar o meu cérebro, certa e ligeira. Mas respondi: não consigo pensar em nada, minha cabeça está parecendo um buraco negro. Interessante, ele disse. Clicou, clicou e anotou.
Seguiram-se mais e mais perguntas, a maioria mais entediante e irritante que a anterior, numa sequência que parecia não ter fim. Senti mãos e axilas ensopadas de suor, às vezes dava qualquer resposta, só queria acabar logo com aquilo. Mas comecei a perceber um padrão, havia método naquela loucura: era um teste. Não um teste para saber se eu morreria de tédio antes de infartar de medo, mas de outro tipo. Até que ele fez um pedido, ao invés de uma pergunta: conte um momento constrangedor de sua vida. De imediato lembrei da manhã daquele mesmo dia.
A cena com o jovem vendedor da livraria. No lançamento do mais novo romance de Toni Brandão. Gargalhadas amargas implodiram silenciosas em minha barriga. Romance de Toni Brandão? Só dele? Mesmo? Sei. Mas não contei essa. Não fui capaz. Também não falei de quando fui atropelado e ainda paguei o conserto da moto. Nem do dia em que arrancaram meus culhões. Literalmente. Inventei uma história qualquer, sempre fui melhor nisso, uma cena em que mijava nas calças na sala de aula da escola.
O fato é que aquela manhã na livraria foi a causa, o tapa de Deus no botão da minha máquina de pinball e eu era a bolinha de metal arremessada para a casa de Toni. Tudo começou naquele coquetel mixuruca. A primeira da sequência de causas. Ali meu destino se definiu. Outros incidentes se somaram a esse no decorrer deste dia de merda, como vocês testemunharão, levando a bolinha relutante a se chocar num obstáculo e em outro, marcando pontos e acumulando raiva. Consequências. Mas a livraria foi a centelha que acendeu o pavio, fazendo de mim essa bilha sem arbítrio, impulsionada por forças alheias e tragada pelo turbilhão indiferente da vida. Se a pergunta era por que invadi a casa de Antoni Brandão, a resposta estava lá.
Que a força do medo que tenho, não me impeça de ver o que anseio.”
Fernando Pessoa
Os livros são objetos transcendentes / Mas podemos amá-los do amor tátil / Que votamos aos maços de cigarro. “
LIVROS – Caetano Veloso